Gastronomia Tradicional de Penafiel
Por Maria José Mendes da Costa Ferreira dos Santos
Quando falamos em termos de gastronomia tradicional estamos evidentemente a falar de um conjunto de influências regionais que marcam de forma inequívoca a gastronomia local. Por outro lado, quando falamos de sabores e de pratos típicos estamos também a falar de percursos evolutivos, de transformações diacrónicas que vão aliando a tradição à inovação, e que se aliam a processos de aprendizagem e educativos, porque o gosto e o paladar também se educam, já que não existem gourmets inatos…
A alimentação é profundamente marcada pelo calendário agrícola e pelo calendário religioso, porque as festas, feiras e romarias influenciam a gastronomia tradicional e a elaboração dos pratos típicos. Por isso mesmo, a confecção, os ingredientes e os sabores diferem conforme a época do ano e reservam-se os pratos mais elaborados e os paladares mais ricos para as principais festas do calendário religioso.
Em Penafiel, os pratos mais típicos são o cabrito ou o anho assado com arroz de forno, o cozido, o sável frito ou de escabeche, e ainda a lampreia, à bordaleza ou em arroz de sangue, tudo bem acompanhado com o excelente vinho verde da região.
Na doçaria, são os doces de feira os que mais se consomem, sobretudo os bolinhos de amor, o pão-de-ló, o pão podre, os rosquilhos, os brinquedos ou os doces de S. Gonçalo. A originalidade doceira de Penafiel é, no entanto, mais bem representada pela sopa seca, o sarrabulho doce e pelas tortas de S. Martinho, muito apreciados por naturais e visitantes, sendo as últimas exclusivas de Penafiel.
Ao longo do ano, como vimos, as ementas e a dieta alimentar diferem conforme a época. Na primeira das festas religiosas, o Natal, cuja véspera recai ainda em período de jejum, também em Penafiel a preferência vai para o bacalhau cozido, acompanhado de batata, ovos, cenoura, couve tronchuda e grelos frescos, que é a época deles. Esta ementa é também aquela que se prepara para a véspera do Dia de Reis.
Já no dia de Natal se podem fazer dois ou mais pratos. Dominam as carnes e os enchidos que compõem o tradicional cozido, desde o presunto e orelha ao salpicão e chouriços, às carnes de vaca e de porco, acompanhados pelo arroz de forno e grelos. A água da cozedura das carnes é aproveitada tanto para cozer os legumes, como para o caldo do arroz, e dá-se-lhe assim gosto a enchidos e fumados dá um toque refinado, sobretudo se for feito em forno de lenha. Como segundo prato temos o capão, que se escolheu e capou em fins de Setembro, ou o lombo de porco assado, com batata e grelos salteados em azeite, não se dispensando, como sempre, a companhia do arroz de forno. A refeição completa-se com a doçaria tradicional, comum ao Norte do país: as rabanadas (de água, leite ou vinho), os bolinhos de bolina, o leite-creme, os mexidos, a aletria…
Chegado o Carnaval, novamente o cozido volta à mesa e, no outro dia, o feijão branco com orelheira, salpicão, chouriço, costelas de porco e carne entremeada, muito típico de Urrô, sendo normalmente a sobremesa um leite creme ou aletria.
O início da Primavera e a chegada da Páscoa vêm mudar as ementas dos dias de festa, entrando em linha de conta dois factores: a abstinência do consumo de carnes e a época de desova do sável e da lampreia, característicos da zona ribeirinha do Douro e Tâmega, sobretudo de Entre-os-Rios e Rio Mau.
O sável é especialmente apreciado se for preparado em escabeche, mas também se consome frito e grelhado. Já a lampreia é estufada, podendo ser também ser servida em arroz, juntando-se-lhe, da qualquer das formas, o sangue avinagrado. Hoje é já muito difícil encontrar sável e lampreia devido à construção das barragens, nomeadamente a de Crestuma, que impede a subida do rio por parte destas duas espécies, o que a faz atingir preços bastante elevados, sendo na maior parte dos casos importadas de outras zonas do país, como do rio Lima, por exemplo, e até mesmo do estrangeiro. O próprio pão reflecte a festa religiosa que se vive, pois é na Páscoa que se fazem, em pão de trigo, as conhecidas “pitinhas” que os padrinhos oferecem como folar aos afilhados.
Por alturas de Abril, ao cabrito ou anho assado com batatas e arroz de forno, como que a abrir o apetite para a festa do Corpo de Deus, antecede uma sopa de castanhas, já “piladas”, que se prepara com presunto e feijão branco, tudo bem cozido e praticamente em creme, dando-se um toque final ao paladar com uma folha de hortelã. A doçaria completa as ementas pascais, especialmente o pão podre e pão-de-ló, que pode ser seco, à maneira de Margaride, ou húmido, tal como ainda hoje é feito em Penafiel, em Entre-os-Rios ou em Rio de Moinhos.
No final da Primavera, Penafiel entra em ebulição com a festa do Corpo de Deus, que é também a festa do carneiro, ementa obrigatória no dia de Corpus Christi. A importância do consumo do carneiro nesta época está atestada pelas notícias que temos, do séc. XIX, quando na véspera se realizava a feira dos carneiros, onde estes eram mortos e esfolados às centenas para abastecer as casas particulares e as tabernas da cidade.
Também por esta altura se institui o costume da Festa da Toura ou do Carneirinho, tradição que se mantém até aos nossos dias, segundo a qual os estudantes devem oferecer aos seus mestres um carneiro, engalanado e conduzido num vistoso cortejo.
Em pleno Verão, a cidade volta a alegrar-se com a festa de S. Bartolomeu, e a feira das cebolas, onde a população se abastece, para alguns meses, não só de cebolas, mas também de melões de “casca de carvalho”. Como é tempo de muito e bom tomate, este chega também à mesa, em arroz malandro ou farinha de pau de tomate com sardinhas.
E é na época de vindimas, pelo mês de Outubro, que se come um dos mais típicos doces do concelho: a sopa seca, que consiste em fatias de pão embebidos em calda fervida de água com açúcar, canela e vinho do Porto, tudo disposto num alguidar, entremeando com folhas de hortelã e polvilhado com açúcar e canela, sendo depois levado ao forno a gratinar. A sopa seca é a sobremesa tradicional do fim das vindimas, embora também se faça como sobremesa de Natal, sendo parte obrigatória da ementa. Existe mesmo a Festa da Sopa Seca, que se realiza em Duas Igrejas, no dia de N. Sr.ª do Rosário (1.º Domingo de Outubro). Outras freguesias também celebram os dias santos com esta iguaria, como Marecos, no dia de St.º André, ou Lagares, no dia de N. Sr.ª da Lapa.
A grande feira de S. Martinho é o exemplo acabado da abundância do final do Outono. É na feira que se provam o vinho novo e as castanhas, e onde mais se comercializam os doces, que desde o séc. XVI eram objecto de venda ambulante nas nossas cidades. Em todas as feiras e festas se vendiam estes mimos cobertos por uma espessa camada de açúcar branco, sob variadas formas: os Bolinhos de Amor, os rosquilhos, as cavacas, e outros, alguns com formas de animais, como o sardão e a passarinha, ou os doces fálicos de S. Gonçalo, que continham uma mensagem explícita, trocada entre namorados. A esta doçaria ambulante junta-se ainda hoje o pão podre, o doce da Teixeira, a fogaça e outros doces de carácter regional alargado e que se podem encontrar em quase todo o país, em especial no Norte.
O fim do S. Martinho e o mês de Dezembro é também a época das matanças do porco, dos rojões e do sarrabulho, e da preparação do fumeiro para o Inverno, especialmente para o Natal, e ainda das papas de abóbora e da marmelada fresca. É por esta altura da matança que se prepara um doce de sabor particular, do qual infelizmente se começa a perder a tradição, e que é o sarrabulho doce, que consiste numa espécie de mexidos minhotos, preparado com sangue do porco e banha, cozidos com pão, mel, canela, limão e vinho do Porto. No entanto, o que melhor caracteriza esta época da grande feira e da principal festa do concelho são as conhecidas Tortas de S. Martinho, ou Tortas de Basto, em que se conjuga um documentado gosto agri-doce à boa maneira do séc. XVII, e que é afinal, tantos séculos depois, aquele que caracteriza estas tortas, feitas de massa fina recheada com picado de carne temperado com noz moscada, e polvilhadas com açúcar e canela, que vos convidamos a provar e saborear, na companhia de um vinho igualmente genuíno.